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Editado por Harlequin Ibérica.

Uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2003 Dixie Browning

© 2015 Harlequin Ibérica, uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Mistérios do passado, n.º 90 - Setembro 2015

Título original: Undertow

Publicado originalmente por Silhouette® Books.

Publicado em português em 2005

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin, Harlequin Internacional e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-7182-3

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Prólogo

Um

Dois

Três

Quatro

Cinco

Seis

Sete

Oito

Nove

Dez

Onze

Doze

Treze

Catorze

Quinze

Dezasseis

Dezassete

Dezoito

Dezanove

Vinte

Vinte e um

Vinte e dois

Vinte e três

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Prólogo

 

Julho, 1976

Ilha Henry, Carolina do Norte

 

– Faz isso por mim – disse ela, – e eu arranjo forma de as meninas serem beneficiadas. Destruirei o testamento de George.

Olhou para a mulher e perguntou-se o que é que ela tinha que o impulsionava a considerar algo tão terrível.

– E se não o fizeres? – perguntou.

– Eu juro. Podes ver-me enquanto o queimo – com o corpo minúsculo, mas muito direito, desafiou-o a não acreditar nela.

Contudo, conhecia-a há muito tempo. Conhecia as suas promessas. Observaram-se, homem e mulher, nenhum deles jovem, nenhum deles velho. Os dois sabiam que, no final, ela conseguiria o que queria. Fora sempre assim, desde que tinham nascido separados por três cabanas em Buxton Woods, unidos por um apelido em comum e também pelo parentesco dos seus pais.

Naquele momento, partilhavam um laço mais íntimo e um segredo obscuro.

– Primeiro, queima-o – disse ele. – Depois, eu farei o que me pediste.

– Não, tens de o fazer primeiro.

Para onde tinha ido a confiança? Os olhos claros dela sempre tinham conseguido atravessar os seus pequenos fracassos e chegar até à grande necessidade que guardava no seu interior.

Passado um momento, assentiu.

Não se beijaram para selar o acordo. O tempo de se beijarem ficara para trás, há muito. Mas avaliaram-se e, no final, a família ganhou. Ele faria o que fosse necessário para proteger os seus, tal como fizera o falecido marido dela.

No entanto, não conseguiu evitar pensar que, de qualquer forma, ela tê-lo-ia feito. Afinal de contas, as meninas também eram suas.

Um

 

Maio, 2003

Ilha Henry, Carolina do Norte

 

Fosse o que fosse que a levava de volta à ilha, era mais forte do que Mariah esperara. Ao mesmo tempo, repelia-a. Isso sempre acontecera, desde que a sua infância confortável ficara fragmentada num só instante.

Às vezes, até sonhava com isso. Não com o pesadelo... isso era diferente... mas com os dias ociosos nos quais se fartava com as sandes grandes e suculentas de tomates caseiros e maionese, à espera, impacientemente, de poder correr para a água, onde os seus primos já nadavam.

Nos seus sonhos, a maré retirava-se quando saltava para a água. Neles, sempre tinha que lutar contra uma corrente poderosa que, implacável, a arrastava para a enseada. Quase preferia ter o pesadelo. Pelo menos, nele não conseguia fazer nada. O que acontecia ali, simplesmente... acontecia.

A chuva começou a cair minutos depois de a lancha se afastar do molhe. Tinha o impermeável num baú, guardado para ser usado assim que decidisse para onde queria ir. Ao rebuscar entre os restos dos últimos sete anos, só deixara roupa suficiente para algumas semanas.

Enquanto o jovem ao leme da robusta embarcação carregava no acelerador, a humidade voou outra vez para ela e colou-lhe o cabelo escuro à cara. Em São Francisco também havia ar salgado, mas, de algum modo, não era o mesmo. Nada era o mesmo. Sentia-se como suspensa entre duas vidas.

Com sabor a água salgada nos lábios, agarrou-se à amurada com uma mão e levou a outra ao estômago, rezando para não vomitar. Na verdade, nunca vomitara num navio, mas recordava-se de se ter sentido enjoada uma ou duas vezes. No entanto, naquela vez, não era a água que lhe causava aquela sensação de náuseas, era...

Tudo. Simplesmente, tudo.

– Lamento o que aconteceu à menina Maud – gritou o jovem. – Era sua avó, não era?

Esquecendo as náuseas, Mariah assentiu.

Maud fora sua avó, uma das Henry da Ilha Henry, embora só tivesse o nome por casamento. Mas se a ouvisse falar... um dos Henry fora congressista, outro, embaixador num principado minúsculo, outros dois, comissários de portos no século dezanove... dava a impressão de que pelas suas veias corria o sangue dos Henry de há séculos.

De facto, era o mais provável. Quase todas as famílias originárias dos bancos tinham gerações e gerações. Nessa altura, não havia ninguém com quem casar, só podiam fazê-lo entre si, e com quem quer que a praia trouxesse, devido a algum naufrágio.

– E agora o seu pai também – gritou o jovem.

Mariah assentiu. E agora o seu pai.

– O Banco dos Cormoranes! – indicou o rapaz, cujo nome era Josh. Apontou em direcção a um banco de areia que se elevava menos de um metro acima da marca da água da maré-alta.

Mariah conhecia-o bem, já que em várias alturas visitara o lugar com a sua mãe, para fotografar os bandos de grandes garças brancas que se juntavam ali durante o dia. Dedicara quase todo o tempo nos baixios à procura de almejas e vieiras, enquanto a sua mãe bebia cerveja e se ria com o guia, os dentes brancos e fortes resplandecendo no rosto bronzeado e atraente.

«Não olhes para trás», advertiu-se com severidade.

«Também não olhes para a frente. Ainda não. Tens de ter uma ideia do que te espera lá.»

A ilha apareceu à vista, através do véu de chuva. Há muitos anos que não regressava ali. Estivera preparada para algumas mudanças, já que desde aquela manhã em que deixara Norfolk, com os furacões que tinham varrido a costa, as casas poderiam ter acabado engolidas pelo mar. E, sem dúvida, ninguém se teria incomodado em contar-lhe.

Embora houvesse sempre a casa de Maud. Com o alpendre que a rodeava e os seus cantos fascinantes, fora construída muito antes da Segunda Guerra Mundial. Resistira ao furacão Emily, que varrera os bancos há alguns anos.

Sem dúvida, o seu pai ter-lhe-ia contado se a casa tivesse desaparecido. Não tinham mantido um contacto muito próximo naqueles últimos anos... de facto, nenhum contacto, mas, sem dúvida, tê-la-ia avisado de algo semelhante.

– Parece que a sua família está de visita – indicou-lhe Josh, travando para deslizar além das duas embarcações familiares, propriedade dos seus tios.

Se precisava de mais alguma coisa que a deprimisse ainda mais, aquilo seria eficaz.

Embora a presença deles tivesse um lado bom: provava que, pelo menos algumas das cinco casas da ilha continuavam em pé. Ao aproximar-se, pôde ver que a velha barraca para os botes, onde costumava brincar quando era criança, ainda estava ali.

– Quer que leve as suas coisas até à casa? – perguntou Josh. Levantou duas malas e depositou-as no cais.

Desde a sua última visita, alguém protegera a extensão de praia que havia de ambos os lados do abrigo.

– Não, mas obrigada – repôs, entregando-lhe uma nota de vinte dólares. – Será o meu exercício do dia.

Prometera a si própria começar a fazer exercício, correr todos os dias. Há muito tempo que se prometia o mesmo, mas daquela vez pensava cumprir.

Ocupada em observar as mudanças desde a sua última visita, há quase oito anos atrás, não ouviu o barulho enquanto Josh fazia marcha-atrás e passava junto ao Ilha Belle, o navio de trinta e cinco pés do seu tio Nat.

– Outra vez em casa – disse, levantando as duas malas para subir pela praia, levemente levantada, pelo o atalho estreito que serpenteava à frente das três cabanas, antes de entrar pela ilha até à residência de Maud.

 

 

Desde a noite anterior, atravessara três zonas horárias, parando brevemente para ir buscar as cinzas do seu pai no crematório de Durham antes de entrar noutro avião com destino a Norfolk e daí apanhar um táxi-aéreo até ao Aeroporto de São Francisco. Então, fora transportada até à doca e daí arranjara uma forma de ser levada até à baía.

Passou a mala mais leve para a sua outra mão e avançou com dificuldade pela areia. Se existia uma arte para caminhar na areia branca, já se esquecera dela.

Conseguiu avistar um pedaço do telhado, indicando-lhe que pelo menos a casa continuava no seu lugar. Naquele momento, pertencia-lhe. Desejou que não fosse assim. Desejou poder subir até ao alpendre frontal e ser recebida por um dos estranhos e incómodos abraços do seu pai. Contudo, nunca mais poderia viver momentos como aquele.

E já que estava a pedir desejos, também poderia desejar um abraço da sua mãe. Sempre dera abraços entusiastas, acompanhados de gargalhadas e beijos ruidosos. Roxie era assim, tão sonora e espontânea como Edgar Henry fora calado e reservado. Eram um casal curioso, por serem tão diferentes um do outro.

Nenhum dos dois estava vivo. E, gostasse ou não, na ilha havia mais recordações do que em qualquer outra parte do mundo, um dos motivos pelos quais se encontrava ali. Viajara até ali para levar o seu pai novamente para casa.

À excepção disso, legalmente, voltava a ser uma Henry, depois de ter recuperado o seu apelido de solteira assim que o seu divórcio saíra. Como era aquela velha frase? «Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.»

E era mesmo assim! Como o seu pai, pelas suas veias corria sangue dos Henry. E como Maud, não precisava de mais ninguém. Viúva e com três filhos, uma casa grande cheia de goteiras, um bote, um conjunto de redes e um jardim, a sua avó afirmava ter cuspido no olho de muitos representantes de alguma agência governamental. Já para não mencionar os construtores, raça que desprezava depois de ter observado como no resto dos bancos tinham levantado um complexo atrás do outro, nas zonas que não tinham sido apropriadas pelo Serviço de Parques, até roubar a identidade à ilha.

 

 

Enquanto subia pelo passeio bordeado de búzios, disse para si que Maud Henry era um modelo de conduta bom para qualquer mulher pobre e desempregada que acabava de se divorciar. Maud levara uma vida segundo as suas próprias regras até ao dia em que, há um ano e meio atrás, com mais de oitenta anos, morrera de repente, aparentemente enquanto abria ostras. Fora realmente uma pena, era uma mulher excepcional.

A última vez que Mariah vira a sua avó, ela tinha o cabelo longo cinzento apanhado numa única trança, o rosto marcado de rugas impecáveis, os olhos claros ainda tão penetrantes, que custava pensar nela como numa idosa. Ela fora intemporal, um ícone, alguém a quem imitar e seguir.

Olhou para lá dos carvalhos e dos cedros, para a casa para onde Maud fora, acabada de casar, e onde permanecera durante toda a sua vida até morrer.

 

 

As três cabanas, na verdade, umas casas de praia, demasiado pequenas para os padrões modernos, tinham sido construídas por cada um dos descendentes Henry à medida que se casavam e iniciavam uma família própria. Levantadas de frente para a Enseada Hatteras, estavam a cem metros do novo molhe. A casa de Maud encontrava-se situada muito mais à frente da beira da água, erigida sobre a colina mais elevada da ilha e protegida por um denso bosque marítimo.

Ao pensar na sua avó, enquanto a chuva lhe colava a camisa ao corpo, desejou tê-la visto uma última vez antes de morrer. Não é que alguma vez tivessem sido próximas. A verdade dolorosa era que a idosa nunca tinha gostado muito dela. No entanto, já adulta, chegara a admirar aquelas qualidades que a tinham definido como mulher, aquela força e a coragem das convicções.

Talvez devesse ter ido vê-la com mais frequência, mas não o fizera e já era tarde demais. Bom, a última coisa de que precisava naquele momento era de um sentimento de culpa. A sua família imediata estava morta, nenhum desejo modificaria isso. O seu casamento estava acabado... e não havia nada que quisesse fazer a respeito disso. Reconhecer uma poderosa falta de juízo era castigo suficiente.

Atrás de uma sebe descuidada, que duplicara o seu tamanho desde a última vez que estivera ali, a casa familiar de cedro, com as persianas de madeira cor-de-rosa que Roxie insistira em pôr, e que ninguém repintara depois da sua morte, parecia igual, talvez mais pequena. O letreiro do alpendre, já gasto, dizia Layzy Dayz, o nome que Roxie dera à casa antes de ela ter nascido. Era um nome curioso e que lembrava férias.

Pousou as malas no degrau mais baixo e franziu o sobrolho perante a janela iluminada. Será que alguém saberia da sua vinda? Tentara telefonar, ao chegar a Durham, mas ninguém atendera em nenhuma das casas. A última vez que estivera com algum dos seus parentes, fora há três semanas, aquando da morte do seu pai.

Não pensava contar-lhes que não conseguira aparecer antes devido ao facto de ter sido hospitalizado por causa da visita posterior ao divórcio que o seu ex-marido lhe fizera.

«Todos sabemos o que o papá queria, portanto, imagino que não haja limite de tempo.»

Provavelmente, discutiriam, mas Mariah manter-se-ia firme. O pai era dela, e ela é que decidiria o quando fazer a cerimónia.

Edgar Henry, um homem metódico que confiava pouco na sorte, deixara um testamento em vida com instruções explícitas. Quando chegasse a sua hora, preferia que o cremassem e que levassem as suas cinzas de volta à Ilha Henry. Tal como Mariah dissera à tia Tracy, porta-voz da família depois de Maud desaparecer, não havia pressa. «Vou buscar as cinzas do papá assim que puder e levá-las-ei para a ilha. Podemos esperar que estejam todos lá para decidir o que fazer depois.»

«Benditos sejam», pensou. Adiantaram-se para abrir a casa e arejá-la. Agradeceu o gesto, já que duvidava ter forças suficientes para abrir uma única janela.

De repente, teve vontade de chorar, o que não era nada comum nela.

A sensação passou assim que viu os ténis molhados no alpendre. Eram grandes. Pousou as duas malas junto à porta e bateu através da mosquiteira, fechada por dentro. Quem estaria lá em casa? Saberiam que vinha?

– Olá! Está aí alguém? Tio Linwood?

Os ténis eram demasiado grandes. Os seus dois tios eram homens pequenos.

– Tia Tracy? – a sua tia era Virgem, por isso, viciada nas limpezas.

A silhueta que apareceu na soleira da porta era demasiado alta para pertencer a um dos seus tios. Olhando, com incerteza, através da mosquiteira, recuou.

– Erik? – há muitos anos que não via o seu primo, o filho da tia Belle e do tio Nat. A última coisa que ouvira sobre ele era que trabalhava em teatros estivais em Myrtle Beach.

– Hollowell – disse o homem.

A voz grave deveria tê-la acalmado, mas não acalmou. E tinha certeza de que não era Erik.

– Posso ajudá-la? – acrescentou.

– Para começar, pode dizer-me o que faz aqui. Não, não se incomode. Vá-se embora, simplesmente. Por favor – adicionou, contrariada. – Seja o que for que esteja a fazer, pode esperar por a manhã. Ou pela semana que vem.

Provavelmente, era um trabalhador que um dos seus tios contratara para fazer reparações. Nenhum deles tinha jeito para as ferramentas, apesar de o seu tio Linwood ser proprietário de uma pequena loja de ferragens. O seu pai era ainda mais inútil. Além disso, raramente passava muito tempo ali, mesmo antes de... Antes.

– Lamento não seguir o seu conselho, mas arrendei a casa pelas próximas seis semanas. Não estará à procura de uma das outras cabanas? Esta chama-se Layzy Dayz, com aquela ortografia.

«Respira fundo, concentra-te.»

– Esta é a... é a minha casa. Não sei quem lhe deu a ideia de que podia ficar aqui, mas não pode. Terá que se mudar. Talvez consiga que um dos meus tios o leve de volta para a enseada ou telefonar a alguém para que venha buscá-lo.

A mão dele mexeu-se para o interruptor de luz que havia junto à porta. Era uma mão grande, de palma quadrada e dedos longos... bem cuidada, sem exagero. Mariah tinha bons motivos para reparar nas mãos de um homem.

O resplendor súbito iluminou o estranho, que enchia a soleira da porta. Atrás dele, conseguiu ver um interior completamente novo. Tapetes novos no chão e até alguns quadros nas paredes... gravuras de pescadores em molduras baratas. A sua mãe nunca as teria escolhido e depois de ela morrer, o seu pai não se preocupara o suficiente com a casa para mudar alguma coisa.

– E você é...? – perguntou o homem.

– Uma Henry – gritou. Santo Deus, começava a falar como a sua avó. – Que por acaso, é proprietária desta casa, portanto, se não se importa... – passou junto a ele e parou no hall de entrada, perguntando-se se podia ser o começo de outro pesadelo.

Amarelo? Alguém pintara os frisos de madeira de cipreste de amarelo? Isso só já era um sacrilégio. Roxie quisera pintar as paredes, mas o seu marido negara-se redondamente. Uma das poucas vezes que lhe negara qualquer coisa, até onde Mariah conseguia recordar.

Voltou a respirar fundo.

– Quanto tempo demorará para arrumar as suas coisas? Se você não tiver um, um dos meus tios terá um telemóvel.

Sem dizer uma palavra, ele permaneceu onde estava, bloqueando a entrada. Mariah sentiu as mãos e os joelhos a tremer.

– Se quiser esperar um minuto, posso mostrar-lhe o meu contrato.

– Não quero saber do seu contrato, não é válido. Disse-lhe que esta casa é minha e eu não a arrendei. Se houve outra pessoa que o fez, resolva-se com ela.

Com serenidade, em contraste directo com a sua própria voz, que se tornara mais estridente, ele disse:

– Isso não será possível. Edgar Henry morreu há três semanas.

Surpreendida com aquelas palavras, esticou a mão para se apoiar na parede. Abriu a boca para o questionar, mas voltou a fechá-la, consciente de que o desconhecido a observava como se fosse uma espécie alienígena.

«Acalma-te», recomendou-se. «Concentra-te. Não estás em condições de enfrentar um intruso, ainda por cima sem reforços.»

– Nesse caso, pode ficar aqui esta noite e resolveremos a questão amanhã – passou outra vez ao lado dele, pegou nas malas e foi-se embora.

Maud teria ficado orgulhosa dela. Na verdade, não perdera a batalha, apenas empreendera uma retirada estratégica e temporária. No dia seguinte voltaria com mais forças para resolver aquela situação.

Na verdade, não era assim tão tarde, mas com o céu nublado e da forma como as coisas tinham mudado, nada lhe era familiar. Através da ramagem, viu luz na cabana dos tios Tracy e Linwood, chamada Boxer’s Dream.

Passou sem parar. Naquela noite, não conseguiria suportar a tia Tracy. Cento e vinte metros mais à frente, a luz brilhava nas janelas de Belle’s Acre, a casa dos tios Belle e Nat.

Teria que ser a casa de Maud. Desde que conseguisse avançar mais alguns metros. Céus, estava cansada! Se a chave não estivesse no seu velho esconderijo, na cornija da terceira janela frontal, dormiria no alpendre, do lado onde não caía a chuva. Ali costumava haver um banco de madeira.

 

 

«Então esta é que é a filha», pensou Gray Hollowell, olhando para a figura que se afastava. Não era o que esperara... especialmente com aquela roupa molhada colada de forma tão reveladora ao corpo.

– Esta é a minha filha – dissera Edgar Henry naquele dia, há mais de um mês. – A fotografia foi tirada uns anos depois da morte da minha esposa.

Na sua voz, houvera uma nota estranha ao entregar-lhe a fotografia. O seu primeiro pensamento fora de orgulho, mas estava misturado com mais alguma coisa. Culpa?

Não, algo mais suave. Pesar, talvez.

Estudara a fotografia de uma Mariah muito mais jovem, de pé, embora um pouco afastada de um grupo de adolescentes risonhos. A rapariga magra de cabelo escuro era a única que não sorria. Olhava directamente para a máquina com o sobrolho franzido.

– Tenho uma fotografia mais recente... do seu casamento, mas está com o rosto virado e não se vê bem. Embora não tenha mudado assim tanto. Mede mais ou menos um metro e setenta, é demasiado magra... sempre foi. O mesmo cabelo e olhos escuros, muito serena. É uma artista. De qualquer modo, tem um diploma que assim o diz. Uma vez, ofereceu-me um quadro, mas nunca consegui entendê-lo. Suponho que o chamaria abstracto.

Homem robusto de sessenta e tantos anos, Edgar Henry parecera estranhamente desconfortável ao falar da sua filha, como se as relações pessoais lhe fossem embaraçosas. Não dera a impressão de ser um homem efusivo.

Perguntara-lhe pelo marido da filha, mais por hábito do que por um interesse real. O marido não poderia ter sido um factor no caso que lhe pedira para investigar. Era, na verdade, bastante irrelevante.

– Estão a divorciar-se, talvez já estejam divorciados. E tenho que dizer que já não era sem tempo. Tentei telefonar-lhe algumas vezes na semana passada, mas só ouvia o atendedor de chamadas. É uma pena.

Gray continuara a folhear o histórico. Naquela altura da conversa ainda não aceitara nada. No entanto, era o tipo de caso que não só pagava a renda, como também acendia uma luz no seu interior. Sempre lhe tinham intrigado os casos que passavam anos, mesmo gerações, sem ser resolvidos. Casos com os quais todos se tinham rendido. Crimes, como aquele, que no seu momento não tinham tido a atenção devida... e o mais provável era que tivessem uma causa justificada. Porém, de vez em quando, apareciam provas que justificavam uma nova investigação. Actualmente, a tecnologia oferecia perspectivas novas se alguém se incomodasse em reabrir um caso. Às vezes, como naquele momento, a única coisa que era necessária era um simples interrogatório.

– Nunca fez sentido, sabe? – replicara o seu cliente. – Quero dizer, sei que foi um acidente, pelo menos é o que todos afirmam, mas ultimamente não deixei de pensar no assunto. O tipo que contratou para que a levasse no navio não era um amador. Jack era um guia experiente. Crescera quase na água. Sei que os acidentes acontecem, mas era um barco novo. Não faz sentido.

– Ninguém o questionou na altura?

– Quando aconteceu, eu estava na Bélgica. Mariah e Roxie... quer dizer, a minha filha e a minha esposa, estavam lá juntas. A minha mãe também e uma das minhas irmãs e a sua família, mas não havia nenhum desconhecido, caso contrário, tê-lo-iam visto. Foi à luz do dia, em plena manhã.

Edgar Henry mostrou-se claramente incomodado ao falar da morte da sua esposa e do guia num acidente de há quase três décadas. Tudo fazia pensar que não fora mais do que isso, um acidente. No entanto, o homem mostrara-se muito decidido, como se percebesse que o seu tempo se esgotava.

– Ultimamente... não sei – hesitara. – Senti esta... tensão, suponho que a pode chamar assim.

No fim, acabara por aceitar o caso, mas recusara a aceitar um adiantamento.

– Umas semanas de arrendamento gratuito é muito mais do que uma compensação, acredite em mim. Qualquer gasto adicional que tenha, posso facturar. Se houver alguma coisa oculta, descobrirei, e se não houver... bom, tentarei não zangar ninguém.

Edgar Henry insistira num arrendamento oficial. Os dois tinham assinado, então, um contrato de seis semanas.

Gray prometera pôr mãos à obra assim que terminasse umas sessões de fisioterapia. Lesionara o ombro há alguns meses ao chocar contra uma barra de metal que ia dirigida contra o seu pescoço. Uns centímetros mais acima e teria ficado paralítico para toda a vida.

Fechou a porta perante a chuva que começava a cair. Então aquela era Mariah, a filha de Edgar e Roxie, que, com sete anos, fora testemunha do incidente que custara a vida à sua mãe. Momento difícil para qualquer criança.

E, naquele momento, o seu pai também estava morto.

Sentira-se indeciso entre cumprir a promessa ou entrar em contacto com a família para lhe devolver o contrato de arrendamento da casa. No entanto, apesar da falta de pistas, ou talvez devido a isso, o caso era-lhe especialmente desconcertante. Se existisse alguma dúvida a respeito da causa do falecimento de Edgar Henry, ter-se-ia dedicado a isso com muito interesse, mas o pobre morrera de uma falha coronária maciça.

 

 

Por fim, tomara a decisão e telefonara a uma das irmãs, Tracy Boxer, para lhe explicar que pouco antes de morrer, Edgar Henry lhe alugara a casa da Ilha Henry durante seis semanas. Pedira permissão para ir vê-la uns minutos.

Quando chegou, a senhora Boxer solicitara reforços. Não gostara daquela situação. Toda a gente pusera-se a discutir mesmo antes de se fazerem as apresentações. Detloff, marido da irmã mais nova, Belle, dirigira a situação. Abertamente, declarara o arrendamento nulo e oferecera-se para lhe devolver o que tivesse pago.

Gray, no entanto, enfrentara-os pela hostilidade manifesta. A teimosia era um dos seus defeitos. Nunca começava uma discussão, mas quando alguém a começava, ele replicava.

A meio da conversa... embora fosse mais exacto dizer confrontação, uma rapariga demasiado loira, com três argolas no umbigo, duas pulseiras à volta do tornozelo e um anel no dedo grande do pé, entrara na sala, despira-o visualmente, mostrara a sua falta de interesse encolhendo os ombros e saíra outra vez.

Tudo durara menos de vinte minutos. E, em nenhum momento, mencionara a causa real da sua presença na casa. Anos de experiência com aquele tipo de casos tinham-lhe ensinado que a maioria das vezes a família estava envolvida. Quanto menos gente soubesse que Edgar Henry reabrira uma velha lata com vermes, melhor.

De modo que lhes contou que estava a recuperar de uma operação ao ombro e que a Ilha Henry parecia o lugar idóneo para isso. Uma ilha pequena, poucos residentes e menos tentações. E isso também era verdade.

Depois de regressar a sua casa para fazer a mala, estabelecera-se em casa de Edgar há dois dias. Tanto os Boxer como os Detloff tinham-lhe dado as boas-vindas. Os homens tinham-no recebido no cais para o informar de que tinham programado alguns arranjos na casa, ao mesmo tempo que lhe ofereciam uma bonificação se mudasse de ideias.

Ele rejeitara-a e respondera-lhes que os arranjos teriam que esperar, ou que se preferiam continuar em frente, teriam que falar com o seu advogado.

E apesar da falta de luxo na cabana, era muito menos deprimente do que a casa de Raleigh, onde vivera com a sua esposa, que morrera há três anos de cancro de ovários.